Parlamentares e entidade que atuaram no processo que culminou na edição da lei reforçam que autoria foi do governo federal. Vereadora afirma que colocação é “oportunista e causa revolta”
Hugo Oliveira
Do Mais Goiás
Ex-senador que pretende retomar carreira na política não recua da afirmação (Foto: reprodução/Mais Goiás)
Em um vídeo intitulado Cora e Hugo – Cordel na Festa de Trindade 2018, o ex-senador e atual pré-candidato à Casa legislativa pelo PTB Demóstenes Torres afirma que é sua a autoria do projeto que mais tarde se consolidou na Lei Federal 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Porém, ele, que se proclama a “Primeira Vítima da Fake News”, título de seu livro – talvez não tenha se atentado para o detalhe de que a autoria do projeto foi do governo federal, à época liderado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP). A declaração, feita em forma de cordel por duas crianças, mas em nome de Demóstenes causou revolta em políticos que participaram ativamente do processo que culminou no texto da referido dispositivo legal.
Relatora do projeto na Câmara, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ ) contesta a afirmação de Demóstenes. Ela, que ajudou a compor a proposta, afirma que “rodou o Brasil” em audiências públicas para ouvir histórias, problemas e dificuldades para “construir um texto que atendesse a demanda social”. Segundo Jandira, apesar da participação popular, o texto original é de iniciativa do Governo Lula. Assista o vídeo:
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“O texto foi do Executivo, mas a proposta foi elaborada pelo Grupo de Trabalho Interministerial criado pelo Decreto n° 5.030, de 31 de março de 2004. A proposta foi amplamente discutida com representantes da sociedade civil e órgãos diretamente envolvidos na temática, tendo sido objeto de diversas oitivas, debates, seminários e oficinas. O Projeto de Lei do Executivo chegou à Câmara em dezembro de 2004 e teve toda a sua tramitação na Casa nos anos de 2005 e 2006”.
Compuseram a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, na condição de coordenadora; Casa Civil da Presidência da República; Advocacia-Geral da União; Ministério da Saúde; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; Ministério da Justiça e Secretaria Nacional de Segurança Pública/MJ.
O Mais Goiás também tentou contato com Lúcia Vânia, mas as ligações não foram atendidas.
“Revolta”
Vítima de agressão e vereadora de Goiânia, Cristina Lopes Afonso, ou apenas dra. Cristina (PSDB), foi partícipe desse movimento. Sua adesão se deu de forma “natural”, já que em 1986 teve 85% do corpo queimado pelo ex-companheiro. Por isso, ela revela que sua história de vida foi o principal motivo para aderir à militância em favor da lei. Conforme expõe a vereadora, a afirmação de Demóstenes causa revolta porque a legislação foi uma “construção coletiva” que partiu da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 30 de abril de 2001, após denúncia de Maria da Penha na entidade internacional.
“A agressão sofrida por Maria da Penha em 1983 gerou muita repercussão. Após ver o seu ex-companheiro, confesso, ficar livre, ela denunciou o caso na CIDH, o que mais tarde gerou uma condenação para o País, que tolerava e era omisso em situações de violência contra mulheres”, reforça. Foi a partir daí, imediatamente após a sentença, que – segundo a parlamentar –, o movimento de mulheres se intensificou, formando redes de colaboração e discussão para formatação de uma legislação. Conforme explica ela, o engajamento ocorreu em praticamente todos os estados, com participação de militantes, juristas, especialistas entre outras pessoas.
Para dra. Cristina, afirmação causa revolta (Foto: reprodução/Mais Goiás)
“Não foi um projeto de iniciativa parlamentar, até porque existiam vários projetos com esse mesmo objetivo que nunca avançavam. A autoria foi do Executivo, do ex-presidente Lula, com relatoria de Lúcia Vânia (então PSDB, hoje PSB) no Senado e de Jandira Feghali (PCdoB) na Câmara. No entanto, o processo foi coletivo e só foi iniciado após a condenação. Então, é um absurdo que qualquer pré-candidato queira se assumir pai ou mãe da lei”, reitera se referindo a Demóstenes.
Cristina ainda critica. “O que Demóstenes teve aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado foi a Lei Consuelo Nasser, batizada assim em homenagem à primeira presidente do Centro de Valorização da Mulher (Cevam). O PL dele apenas aumentava a pena e, apesar de ter a mesma temática, os conteúdos são muito distantes. Isso é surfar em uma área que não é da militância dele. Eu participei do processo e não reivindico a autoria dela. Essa afirmação é oportunismo e soa como desespero”.
Cevam
Com tom mais brando, a ex-presidente do Centro de Valorização da Mulher (Cevam), Dolly Soares, que atualmente atua como conselheira da entidade, ressalta a importância de Demóstenes em conquistas referentes à luta de mulheres em Goiânia.
No entanto, em coro com Jandira e dra. Cristina, Dolly afirma que a Lei Maria da Penha foi resultado de um “consórcio de instituições nacionais”. “Foi isso que abriu um leque para discutir o assunto nacionalmente. Tivemos várias audiências públicas para discutir o melhor caminho. Participamos disso aqui em Goiás”.
Página do Diário do Senado Federal – consta no documento que a autoria do projeto é do Governo Federal (Imagem: divulgação/Senado Federal)
A contribuição de Demóstenes para a causa feminina se deu, segundo ela, ao lado do ex-governador Marconi Perillo (PSDB), quando atuaram para transferência do local hoje ocupado pelo Cevam e também, após a eleição de Demóstenes ao Senado, quando o então parlamentar editou o projeto de Lei Consuelo Nasser.
“Nossa ex-presidente reivindicou que ele propusesse isso, caso eleito porque na época só tínhamos a Lei 9.099, muito frágil. Aqui em Goiás ele foi um líder. Quando a movimentação para o Maria da Penha se iniciou, parlamentares também pegaram no bojo do projeto de Demóstenes. A lei, entretanto, não é de autoria dele. Ele colaborou. Participamos de um processo. É época de eleição, então todo mundo quer estar bem na fita”.
Argumentação
Em nota, Demóstenes não recua da afirmação contida no vídeo. Para ele, o projeto de Lei Consuelo Nasser foi suprimido pelo governo federal, que “temia” a popularidade obtida pelo parlamentar com apresentação da proposta, interposta na sequência pelo projeto de lei que mais tarde se tornaria a Lei Maria da Penha.
“O projeto de lei foi bastante aplaudido e o próprio governo Lula, ao qual Demóstenes se opunha com veemência, mandou que sua bancada apoiasse a ideia. A saída encontrada pelo Palácio do Planalto foi barrar a exposição obtida pelo senador oposicionista e dar a sua versão do projeto”.
Ainda de acordo com texto, a lei proposta pelo então Senador foi convertida na Lei Maria da Penha. “O que importava era a mudança na legislação. Assim, o que era Lei Consuelo Nasser virou Lei Maria da Penha (homenagem igualmente merecida), e o que era projeto de opositor virou projeto de governo e o que era endurecimento da lei foi abrandado”.
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