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sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Amazônia: O alvo da maior cobiça do mundo Com a prática da agropecuária, a extração de madeira, a construção de estradas e usinas hidrelétricas, a exploração de minérios - tudo desprovido de um mínimo de planejamento -, um terço da floresta amazônica ficou pelado. Mas não é com sua nudez árida que se preocupam os interesses econômicos. Infelizmente, nesse, como em muitos outros, a questão é outra



Amazônia: O alvo da maior cobiça do mundo

Com a prática da agropecuária, a extração de madeira, a construção de estradas e usinas hidrelétricas, a exploração de minérios - tudo desprovido de um mínimo de planejamento -, um terço da floresta amazônica ficou pelado. Mas não é com sua nudez árida que se preocupam os interesses econômicos. Infelizmente, nesse, como em muitos outros, a questão é outra


Com a prática da agropecuária, a extração de madeira, a construção de estradas e usinas hidrelétricas, a exploração de minérios – tudo desprovido de um mínimo de planejamento -, um terço da floresta amazônica ficou pelado. Mas não é com sua nudez árida que se preocupam os interesses econômicos. Infelizmente, nesse, como em muitos outros, a questão é outra

Por Paulo Donizetti



A índia Moroti atirou sua pulseira ao rio para mostrar às amigas que sua grande paixão, o guerreiro Pitá, a traria de volta como prova de amor. O guerreiro caiu no capricho da moça, mergulhou e não voltou. Meio arrependida, meio desesperada, a índia mergulhou atrás do guerreiro amado. Adeus romance. No dia seguinte, a tribo viu brotar uma flor gigante. Sua parte central, branca, foi associada a Moroti. As pétalas avermelhadas, ao redor, seriam o bravo Pitá. Assim, atesta a lenda, a maior flor do mundo surgiu de uma história de amor. Séculos depois, o inglês Richard Schomburgk, que não era sapo nem príncipe, mas um botânico esperto, aproveitou a beleza e o gigantismo daquela flor para fazer média com sua rainha. Nem Moroti nem Pitá. A maior flor do mundo, que vive em águas amazônicas, ficou conhecida internacionalmente por vitória-régia, em homenagem à rainha da Inglaterra.

Mas nem só de fazer média com seus soberanos vivem os interesses estrangeiros na Amazônia, área de maior potencial ecológico do planeta e que concentra, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), metade da biodiversidade mundial – como é chamado o conjunto de plantas, animais e insetos, enfim, o que tem vida. A vitória-régia é apenas uma das dezenas de milhões de espécies desse ecossistema, entre vegetais, animais, peixes, insetos. “Apenas” 30 mil plantas têm nome e RG, entre elas 5 mil tipos de árvore. A América do Norte, como comparação, tem 650. Já foram encontradas numa única planta oitenta modelitos diferentes de formiga, o dobro das espécies catalogadas nas ilhas da rainha Vitória. A água que corre durante 1 segundo na foz do Rio Amazonas daria para um dia consumo de uma cidade com 2 mil habitantes. De cada dez copos d’água doce do mundo, dois estão nos rios da floresta, onde nadam cerca de 3 mil espécies diferentes de peixes, trinta vezes mais que em toda a Europa. Na mata de Moroti e Pitá, podem-se encontrar um macaquinho do tamanho de uma lata de cerveja (e que ainda tira piolho de índio) ou um besouro de 20 centímetros.

Dos países que possuem um pedaço dos 7,5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia em seu território, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, além de uma parte do Suriname e das Guianas, o Brasil é o mais privilegiado: fica com dois terços. Os 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia Legal brasileira alcançam os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, além do norte de Mato Grosso e Tocantins e o oeste do Maranhão. Apesar desse tamanhão, que além de tudo abriga população de 18 milhões de pessoas, a Amazônia é pouco notada pelas autoridades brasileiras. Omissão que pode custar caro às populações locais, ao Brasil e ao mundo em termos econômicos, científicos e ambientais.


O Inpa, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, é a maior autoridade oficial em termos de produção de conhecimentos para a região. Foi criado por decreto do presidente Getúlio Vargas, em 1952, e implantado, após dois anos, como reação nacionalista à idéia da Unesco de criar um instituto internacional para fuçar os segredos da região. Mas funcionou precariamente e hoje, mesmo tendo conquistado status de centro de excelência, o Inpa ainda carece de investimentos. Conta com pouco mais de 750 funcionários, entre os quais 119 doutores, 79 mestres e treze graduados na área de pesquisa. Na carreira de desenvolvimento tecnológico são dezesseis mestres, 56 graduados e 252 servidores sem graduação. E, ainda, na carreira de gestão e planejamento, 106 mestres, 25 graduados e 192 sem graduação.


Reportagem da revista Amazônia 21 revela que o último concurso para “atrair” doutores ao Inpa, em 1999, oferecia salários líquidos de 2,5 mil reais. Recebeu 24 inscritos para as 38 vagas. O pesquisador do Inpa Luiz Antônio de Oliveira diz que em toda a Amazônia Brasileira atuam 500 especialistas com nível de doutorado. O contingente, que inclui setor privado e estrangeiros, é bastante modesto se comparado com algumas universidades americanas e européias e uma formiga diante das dimensões do potencial a ser estudado e dos objetivos do órgão: “gerar, promover e divulgar conhecimentos científicos e tecnológicos para a conservação do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável dos recursos naturais, em benefício principalmente da população regional”.

E quanto maior for o descaso nacional maior será o apetite estrangeiro. A senadora Marina Silva (PT-AC) classifica pelo menos três maneiras distintas de observar-se o interesse internacional. Uma delas é mitificada pelo referencial simbólico do que a Amazônia representa para o imaginário global. “O homem vive de sonhos, de esperança e tem muita expectativa quanto aos segredos da Amazônia”, acredita. Na outra ponta, há um tipo de interesse econômico tangível relacionado à apropriação dos recursos naturais, como a exploração de madeira, minérios e, especialmente, da biodiversidade por parte das indústrias de cosmético e farmacêutica, negócios com previsão de faturamento mundial próximo de 800 bilhões de reais (com “b”!) no ano que vem. Numa classificação intermediária, está o interesse global de âmbito ambientalista e conservacionista. Nesse aspecto, aliás, o interesse internacional parece maior que a atenção prestada dentro de casa.


As previsões de escassez de água num futuro próximo fazem do potencial hídrico amazônico um templo de adoração. E não há como falar sobre o assunto mais em pauta da atualidade, o aquecimento global, sem mencionar os dois pólos da bateria amazônica. Um, o positivo, é o serviço que a floresta presta enquanto sumidouro de gás carbônico, um dos principais gases causadores do efeito estufa. A significativa quantidade de CO2 tirada da atmosfera por ser fixada pela floresta faz dela um filtro ecológico. O lado ruim é que a quantidade de gás emitido pelas queimadas estraga boa parte desse esforço.

Para a senadora, é compreensível a preocupação ecológica mundial. “Essa desconfiança decorre de nossa falta de planejamento, de utilização inadequada, falta de sustentabilidade, falta de alocação de recursos. Nossa política gerencial é falha”, afirma Marina Silva. Entretanto, observa ela, fazer discussão puramente ambientalista não interessa ao Brasil. A defesa do meio e da natureza tem de estar colada a interesses sociais. “Prejuízos ambientais são distribuídos para todos e a preocupação global com o equilíbrio é real, mas o principal interesse na internacionalização é econômico e, nesse ponto, nenhuma potência mundial pára para pensar que na Amazônia brasileira vivem quase 20 milhões de brasileiros.” A senadora defende que um projeto nacional que almeje equilíbrio e desenvolvimento para a Amazônia requer visão desdobrada em cinco dimensões: sustentabilidade ambiental, econômica, social, cultural e política, não necessariamente nessa ordem. “Por fim, tudo isso tem de estar amarrado pela sustentabilidade ética. Nosso desafio ético é viabilizar o desenvolvimento sobre esses pilares. E todos os setores envolvidos, das populações ao governo central, precisam participar da formulação das soluções. Se tivermos capacidade de dar essas respostas podemos colocar o Brasil no topo da respeitabilidade mundial.”


Enquanto isso não acontece a imagem que fica é a da destruição. O jornalista e ambientalista Washington Novaes diz que a biodiversidade é a maior riqueza da Amazônia e pode estar sendo perdida em razão do desmatamento e da exploração predatória. Novaes diz não conhecer nenhum projeto de internacionalização da Amazônia, mas assinala que a preocupação ambiental é um fenômeno que não tem fronteiras. “O que acontece num lugar afeta o resto. Se o Brasil não for competente, se não souber preservar, é lógico que as pressões internacionais vão aumentar.” O problema, para ele, é que o Brasil não tem sido competente. “Continuamos desmatando sem regras. Avançamos as fronteiras agrícolas até a região amazônica quando a ciência já disse que o solo e o clima não favorecem a agricultura. Fazemos vias de transporte que têm impacto ambiental enorme e construímos hidrelétricas para produzir alumínio, que nenhum país do mundo quer fabricar devido aos prejuízos ecológicos que causa”, enumera.


De fato, o desequilíbrio entre as cabeças pensantes é também amazônico. Mesmo alertados por cientistas, fazendeiros depenaram grandes áreas de floresta para tentar cultivos. Boa parte dessa devastação irracional contou com apoios governamentais. Foram necessários anos de prejuízos e desperdício de dinheiro público, inclusive via Sudam e Banco da Amazônia, para só agora algumas autoridades começarem a se tocar de que o solo da região é praticamente imprestável para as culturas agropecuárias. Outro negócio da China e da Malásia, e da Indonésia, e do Japão, segundo o Greenpeace, são as madeireiras. Negócio também descoberto por empresas brasileiras, mas, com uso de tecnologia errada e apetite voraz, mesmo a exploração legal de madeira é altamente destrutiva. A extração ilegal e predatória de madeira é outra fonte de sangria da floresta. O próprio governo federal já sabe que 80% da extração é ilegal, mas entre saber e tomar atitudes, muitas vezes ferindo interesses de aliados políticos, há grande diferença.

O fato é que com a prática da agropecuária, a extração de madeira, a construção de estradas e usinas hidrelétricas, a exploração de minérios – tudo desprovido de um mínimo de planejamento -, um terço da floresta ficou pelado. E o pior: por atividades que, embora pareçam atrativas para a economia local, têm algo de antropofágico. O coordenador de campanhas do Greenpeace para a Amazônia, Paulo Adário, lembra, como exemplo, que quando a empresa Paragominas instalou-se no Pará vários trabalhadores migraram para lá. “A empresa extraiu toda a madeira que podia e depois foi embora. Todos ficaram sem emprego. Foi um caos social.”

Paulo Adário considera que é preciso haver distinção entre os interesses internacionalistas. “Muitas pessoa acham, de forma equivocada, que as ONGs são agentes do capitalismo internacional, que trabalham pela internacionalização da Amazônia. O discurso nacionalista muitas vezes esconde interesses internacionais quando, por exemplo, defende a extração de minérios na Amazônia. O que está em jogo são interesses de indústrias nacionais e estrangeiras que só estão de olho no lucro. E vendem a imagem de que são aliados do desenvolvimento. A WTK, multinacional malaia, compraterras a preço vil e não há uma grita contra isso, se preocupam com as ONGs”, esbraveja. Para o coordenador do Greenpeace, a legislação brasileira é insuficiente e não há mecanismos para que seja cumprida. “A solução
passa pela instituição de uma política nacional, o país precisa definir o que quer da Amazônia. A Ásia está degradada e, na África, o que sobrou foi leiloado.”



O jornalista Marcelo Leite, editor de Ciência do jornal Folha de S.Paulo e autor do livro Floresta Amazônica (Publifolha), não vê progresso algum do Brasil na questão ambiental, que continua descasada de um planejamento estratégico do governo. “Só depois de publicados em revistas internacionais artigos alertando para a possibilidade de indução de desmatamento como resultado das obras de infra-estrutura é que o governo promete aprofundar estudos de impacto ambiental. Sem pressão da opinião pública nacional e internacional, o governo faz muito pouco para prevenir problemas futuros e gasta enorme quantidade de recursos em atividades de fiscalização e repressão, necessárias, mas que não são solução”, observa o jornalista, para quem há muitos projetos isolados, mas falta um planejamento mais global para a região, uma política para a Amazônia que coordene de forma racional atividades menos agressivas, como manejo sustentável de madeira, sistemas agroflorestais e ecoturismo.

Entre os poucos projetos brasileiros, um dos considerados prioritários na opinião de Paulo Adário, do Greenpeace, é a demarcação das terras indígenas, preservando um patrimônio cultural e florestal, já que os índios vivem na floresta há centenas de anos e possuem grande conhecimento da natureza. Mas nem para assegurar demarcações eficazes, e livres de invasões, o governo atual tem mostrado capacidade. Segundo levantamento feito pela Funai, nada menos que 84% dos territórios indígenas já demarcados sofrem avarias de toda ordem – como problemas de arrendamento, exploração mineral e florestal, perturbações provocadas pela construção de estradas e interferência do setor elétrico.

Para a senadora Marina Silva a ausência de um projeto que sistematize a parceria da pesquisa científica com as comunidades da floresta é um desperdício, uma vez que os índios têm conhecimento milenar da biodiversidade que cerca suas culturas, assim como o caboclo e o ribeirinho têm intimidade de séculos de convivência com as soluções que a floresta lhes oferece. “Qualquer abordagem sobre a Amazônia que não considere essas contribuições preexistentes na região padece de distanciamento da realidade. E às vezes a ciência, de forma prepotente, nega a riqueza desse conhecimento”, sentencia Marina.

O primeiro projeto de maior amplitude de acesso à biodiversidade brasileira, aliando desenvolvimento sustentável e conservacionismo ambiental, foi de autoria da própria senadora em seu primeiro ano de mandato, 1995. Incluía, entre outros princípios, como acessar os recursos naturais e remunerar o saber, levando em conta o reconhecimento das populações. Segundo Marina, a sustentabilidade tem de se dar mediante uma “tríplice aliança” envolvendo Estado, o dono dos recursos (proprietário) e o investidor. “Se o Estado autoriza o investimento, mas a comunidade não concorda, nada feito. Tem de haver sintonia.”


O projeto da senadora regulamentava o acordo da biodiversidade convencionado na Eco 92 e ratificado pelo Brasil em 1994 – porém, sem nenhuma outra iniciativa governamental. O Legislativo aprovou, mas o governo segurou. “Para tapar o buraco, e por uma necessidade circunstancial de legitimar um contrato envolvendo os interesses de uma multinacional, o governo apresentou medida provisória que nada mais foi que uma compilação malfeita do projeto original. Uma espécie de biopirataria institucional. Agora, que empresa séria fará investimentos eloqüentes e duradouros num assunto regulado por medida provisória?”, questiona. Com a total negligência federal, Marina classifica os governos do Acre, do petista Jorge Viana, e do Amapá, do peessebista João Alberto Capiberibe, como dois raros pólos que estão levando a sério o desenvolvimento sustentável.

O governador do Amapá e a primeira-dama e deputada estadual, Janete Capiberibe (PSB), foram buscar o apoio que não encontram no governo federal em outras fronteiras com um programa de desenvolvimento sustentável na bagagem. E conquistaram credibilidade, e recursos, junto ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e instituições da Alemanha, França e Holanda para mostrar que quem tem projeto definido com controle social não precisa ter medo do bicho-papão da internacionalização. O resultado foi a viabilização de dezenas de iniciativas voltadas à educação, formação e geração de renda dirigidas às comunidades.

Também diferentemente do âmbito federal, Amapá, Acre e Amazonas têm leis estaduais visando preservar a diversidade e a utilização sustentável dos recursos genéticos localizados nos estados com participação das comunidades locais nas decisões que digam respeito aos recursos genéticos disponíveis nas áreas que ocupam, inclusive nos benefícios econômicos e sociais deles decorrentes. Autora da lei no Amapá, a deputada assinala que essas leis locais são uma forma de combater a biopirataria. “Vários produtos comercializados pelos laboratórios do mundo foram descobertos pela manipulação de materiais levados de forma sorrateira da floresta amazônica”, garante a deputada.

Ações localizadas ainda estão longe de significar uma política global do país para a Amazônia. Menos de 5% da população da região está no Acre e Amapá. Mas apresentam-se como referência importante. A senadora Marina Silva destaca a participação popular como fundamental para projetos de desenvolvimento sustentável se consolidarem. “Assim como no espaço urbano as pessoas devem se mover pelo sonho da cidadania, parte importante da população do meu Estado já trabalha com outro conceito de sonho e de projeto: o de florestania.”

(Colaborou Glauco Faria)


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