A interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana no atual contexto da Constituição brasileira
A dignidade da pessoa humana é um valor intrínseco ao indivíduo, portanto, indisponível e irrenunciável. Sua efetividade é corolário do seu caráter supraconstitucional.
Resumo: A dignidade da pessoa humana enquanto valor universal humanístico passou a ser o fundamento das Constituições dos países democráticos, deslocando a finalidade do Estado para um único ponto, ou seja, o indivíduo. O Constituinte originário com base nessa determinação definiu de forma expressa no artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito Brasileiro. Diante dessa constatação, o presente trabalho teve como objetivo, interpretar o princípio da dignidade da pessoa humana no atual contexto da Constituição Brasileira. No entanto, para a consecução desse objetivo realizou-se uma pesquisa bibliográfica de matérias pertinentes a temática, dentre as quais destacaram-se o método de interpretação de Peter Häberle e o Princípio da Força Normativa da Constituição desenvolvido por Konrad Hesse, os quais ratificaram o principio da dignidade da pessoa humana como a verdadeira força normativa da Constituição Brasileira, capaz de fundamentar a eficácia dos direitos fundamentais.
Palavras-chave: Princípio da dignidade da pessoa humana. Estado Democrático de Direito. Constituição. Interpretação Constitutional.
INTRODUÇÃO
Inicialmente, a palavra dignidade teve na sua semântica uma concepção mais restrita, de efeito quantitativo e modulador, diferentemente do seu contexto hodierno: uma qualidade ínsita ao ser humano, que como tal, o diferencia dos demais seres; um valor agregado à pessoa, portanto, indisponível e irrenunciável.
A dignidade da pessoa humana enquanto valor universal humanístico passou a ser o supra-sumo, o fundamento das Constituições dos países democráticos, deslocando a finalidade do Estado para um único ponto, ou seja, o indivíduo, de modo a direcionar toda a sua atuação para persecução dos direitos fundamentais deste e a promoção da justiça social.
Assim, diante desses pressupostos, o presente trabalho teve como objetivo interpretar o princípio da dignidade da pessoa humana no atual contexto da Constituição Brasileira. Para a consecução desse objetivo realizou-se uma pesquisa bibliográfica de matérias pertinentes a temática dentre as quais destacaram-se, o método de interpretação de Peter Häberle e o Princípio da Força Normativa da Constituição desenvolvido por Konrad Hesse I- ANTECEDENTES HISTÓRICOS REFERENTES À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade enquanto valor intrínseco do homem, o torna um ser ímpar entre os demais animais. Apesar dessa afirmação, não se sabe ao certo quando esse pensamento se tornou uma práxis entre os humanos. Porém, há relatos históricos que o embrião dessa terminologia foi gerado no mundo antigo, através do ideal grego de construir um homem com validade universal e normativa. Ressaltam-se também, os Códigos de Hammurabi e Manu e as Lei das XII Tábuas, os quais traziam dispositivos primitivos acerca do conceito da dignidade da pessoa humana.
Conforme Sarlet (2010, p.32), o pensamento filosófico e político da antiguidade atribuíam ao termo dignidade (dignitas), a posição social ocupada pelo indivíduo na sociedade, bem como o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, de modo a denotar um sentido de quantificação e modulação da dignidade, possibilitando determinar a existência de pessoa mais digna ou menos digna. Acrescenta o autor que no período do estoicismo, a dignidade era considerada uma qualidade inerente ao ser humano, o que o distinguia dos demais seres. Nesse pensamento, a dignidade estava associada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o homem como um ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como a idéia de que todos os seres humanos são iguais em dignidade.
Não obstante, o pensamento grego na fase estóica, ter influenciado em demasia a concepção moral de dignidade, foi somente com Tomás de Aquino que esta palavra assumiu uma conotação de qualidade ínsita do ser humano.
A idéia tomista de dignidade como valor inerente ao homem foi constituída sob os fundamentos da definição de pessoa formulada por Boécio - substância individual de natureza racional- bem como, a identificação do livre arbítrio e da racionalidade como caracteres diferenciadores do homem para com os outros animais.
Analisando os ensinamentos de Boécio, Aquino (ST Iª,q.29,a.1) associou o conceito de pessoa ao de hipóstase, haja vista ser esta considerada uma substancia individual que existe por si. Através dessa idéia preliminar, o Aquinante definiu pessoa como sendo, o indivíduo de natureza racional, que como tal, é capaz de dirigir a sua própria vida e ter domínio dos seus próprios atos.
Ainda dentro desse contexto, afirma Aquino (ST Iª,q.29,a.3), ser a pessoa humana a criação divina mais perfeita de toda a natureza, que por ser dotada de racionalidade subsiste numa essência denominada de dignidade. Por isso, dá-se o nome de pessoa a todo o indivíduo de natureza racional, que tem como qualidade própria a dignidade.
Assim, a visão tomista de dignidade está centrada na idéia de que o homem enquanto pessoa e imagem de Deus, além de existir por si, é capaz em virtude da sua racionalidade, agir por si, ou seja, por causalidade própria. Esse livre arbítrio de determinar a sua própria existência e o seu destino, lhe conferi uma superioridade em relação a todas as outras criaturas. Superioridade essa, que Tomás de Aquino intitulou de dignidade (ST Iª, q.93, a.2. e a.5)
Percebe-se então, que a concepção de dignidade constituída por Tomás de Aquino, assenta-se na idéia de que, se todos os homens são criados a imagem e a semelhança de Deus, são consequentemente inatos e naturalmente dotados de uma mesma racionalidade e dignidade, que por sua vez, lhes confere a capacidade de autodeterminação. Pela força da sua dignidade, o indivíduo que é detentor de liberdade, constrói a sua existência por si próprio numa natureza racional.
Esse ideal de dignidade provinda de uma natureza humana e racional foi consolidada por Immanuel Kant, através de suas críticas e análises sobre as possibilidades do conhecimento, principalmente a partir da Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica.
Kant (1986:68) contextualiza essa abordagem, explicando a diferenciação entre os seres irracionais e racionais. Segundo esse filósofo, os seres irracionais são destituídos de razão e por assim dizer, são denominados de coisa, o que os fazem ter um valor relativo, susceptíveis de serem avaliados como objetos das inclinações. Já os seres racionais, que são chamados de pessoas, caracterizam-se com fim em si mesmo, ou seja, algo que não pode ser empregado como simples meio desta ou daquela vontade.
Neste universo finalista, Kant (1986:77) explica que:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
Deduz-se dessas palavras, que o homem uma vez pertencente ao reino dos fins, é possuidor de um valor intrínseco denominado de dignidade. Tal valor está acima de todo e qualquer preço. Nunca poderá ser posto a um cálculo ou confrontar-se com qualquer importância numérica, sem ferir à sua essência. Portanto, conceber o indivíduo em sua dignidade, é simplesmente considerá-lo como um fim em si mesmo.
Segundo esse o ideal kantiano de dignidade, o homem não pode dispor do próprio homem para mutilar, degradar ou matar. Violar os direitos dos homens tenciona servir-se dos outros simplesmente como meios, sem considerar que eles, como seres racionais que são, devam ser sempre tratados como fins em si mesmos.
Kant compreende (1986:102) que a racionalidade do homem o permite desfrutar de uma liberdade para legislar e, ao mesmo tempo, só obedecer àquelas leis que ele mesmo se dá. Essa liberdade – que faz o homem se autodeterminar – Kant a denominou de autonomia da vontade, princípio supremo da moralidade.
Logo, àquele que concebe e age sob sua máxima, como sendo esta um valor universal, reconhecerá os seres racionais como fins em si mesmo. Disso resulta ser a autonomia o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional. Weber (2009:234) explica esse fundamento kantiano afirmando que, poder querer para todos, o que se quer para si, é a máxima expressão da autonomia. Ser autor de leis universais, para um “reino dos fins” do qual se faz parte como ser racional, é a máxima expressão da liberdade e dignidade.
Assim sendo, para este ilustre filósofo, o homem é um ser único e insubstituível, de modo que, qualquer ato que vise coisificá-lo, além de atentar contra a dignidade humana será também imoral.
Conforme Martins (2008, p.31), Sartre diverge de Tomás de Aquino e de Kant no tocante a existência de uma dignidade inata do ser humano, pois para esse filósofo, a dignidade humana reside no fato de que a existência do homem estar toda para ser construída, ou seja, diferentemente das coisas que já têm uma existência predeterminada, o homem tem plena liberdade para fazer-se, e aí é que reside a sua dignidade.
No entanto, apesar das explicações filosóficas de Kant sobre a dignidade, ainda não se formulou aqui um conceito mais preciso sobre a dignidade da pessoa humana. Porém, se faz mister inicialmente entender o que venha a ser dignidade humana.
Segundo Sarlet (2010, p.60), a dignidade humana difere da dignidade da pessoa, pois se refere à humanidade como um todo; dá uma dimensão social da dignidade da pessoa, ou seja, uma dimensão intersubjetiva da dignidade, partindo da situação básica do ser humano em relação com os demais, ao invés de fazê-lo em função do homem singular, limitado a sua esfera individual.
Após esse esclarecimento, o mesmo autor define a dignidade da pessoa humana como sendo uma qualidade intrínseca e distintiva da cada pessoa, que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, de forma a garantir-lhe as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Disso tudo resulta que, a obrigatoriedade de respeitar esse atributo gera uma dúplice obrigação estatal: uma de cunho negativo e outra de aspecto positivo. A primeira é oriunda dos ideais liberais e conduz à abstenção por parte do Estado a tudo aquilo que possa violar a dignidade da pessoa humana, configurando-se dessa forma nos direitos de defesa; já a segunda, é resultante dos fundamentos do Estado social, os quais impõem ao poder estatal a obrigação de tutelá-la, de forma a favorecer prestações fáticas e jurídicas com o fito de promover e proteger a dignidade da pessoa humana.
II- O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO CONTEXTO ATUAL DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
A dignidade da pessoa humana transcendeu a metafísica, tornou-se o sustentáculo da concretização dos direitos humanos. A sua concepção universal de valor inerente ao homem, não só é fundamento de muitos Tratados Internacionais, como da maioria das atuais constituições democráticas.
Destarte para melhor compreender o princípio da dignidade da pessoa humana no contexto atual da Constituição Brasileira, dividir-se-á essa temática em dois tópicos: a natureza jurídica da dignidade da pessoa humana e a hermenêutica constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana.
2.1 A natureza jurídica da dignidade da pessoa humana
Como já fora mencionado, a dignidade da pessoa humana é um valor ínsito do homem, correlaciona-se naturalmente à essência deste. É, portanto, esse seu caráter supra-constitucional, que possibilitará a sua efetividade independentemente da sua positivação pelo direito.
Uma vez positivada, a dignidade da pessoa humana promove unidade ao sistema, ocupando um lugar de relevância ímpar no ordenamento jurídico. No entanto, argumenta-se a sua natureza jurídica. Segundo Gam (2003, p.137), para alguns estudiosos do direito, a dignidade da pessoa humana é um valor; já para outros, um princípio.
Essa dúvida é bem esclarecida por Alexy (2008, p. 144). Segundo esse autor, princípios e valores estão intimamente ligados, a passo de poder haver colisão e sopesamento entre princípios e colisão e sopesamento entre valores. Entretanto, há uma diferenciação entre estes: os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes; têm caráter deontológico, relaciona-se ao “dever-ser”. Não constituem mandamentos definitivos, mas só, prima facie. Os valores se situam na dimensão axiológica, ou seja, do que efetivamente “é” de acordo com um juízo do bom e do mau. Assim, para esse autor, a dignidade da pessoa humana consiste num princípio jurídico, haja vista seu caráter normativo e deontológico.
Alexy (2008, p.97) ressalta que, em uma eventual colisão entre os princípios, a solução se dará mediante um juízo de ponderação, sopesamento. Conforme essa determinação, deve-se instalar entre os princípios que colidiram uma relação de precedência condicionada, ou seja, em determinado caso concreto e à luz das circunstancias analisadas, um princípio prevalecerá sobre outro, sem, contudo, invalidá-lo, pois, o princípio que cedeu poderá em outro caso concreto obter preferência em relação ao que prevaleceu.
Diante da constatação de que a dignidade da pessoa humana é uma norma jurídica de caráter principiológico, insurge o questionamento sobre sua relativização. Alexy (2008, p.111) defende a tese de que, o principio da dignidade da pessoa humana tem uma “aparência” de ser absoluto, isso se dá pelo fato de a norma da dignidade humana ser tratada em parte como regra e em parte como princípio. Quanto o seu conteúdo de princípio, este lhe confere um amplo grupo de condições de precedência, bem como um elevado grau de segurança, no sentido de que, sob uma série de situações prevalecerá sobre normas contrapostas. Com relação o seu teor de regra, não se questiona a sua precedência ou não sobre outras normas, mas tão somente, se numa dada situação concreta ela foi violada, situação essa difícil de ocorrer, haja vista que, a norma de dignidade humana, contém um amplo espectro de soluções igualmente razoáveis. Então, para Alexy (2008, p.113), não é o princípio da dignidade humana que é absoluto, mas a regra a qual em razão de sua abertura semântica não necessita de limitação em face de alguma relação de preferência.
Dentro desse contexto, Mendes (2009, p.174) posiciona-se sobre o caráter não absoluto do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações intersubjetivas. Para este autor, a dignidade da pessoa humana porque sobreposta a todos os bens, valores ou princípios constitucionais, em nenhuma hipótese é suscetível de confrontar-se com eles, mas tão somente consigo mesma, ou seja, num possível conflito entre as dignidades de pessoas diferentes. Nesse caso então, a dignidade da pessoa humana de um ou até mesmo de ambas, será relativizada no caso concreto.
Com base nessas afirmações, pode-se afirmar que, independentemente de uma previsão expressa na Constituição, a dignidade da pessoa humana deve ser assegurada, sob o risco de se estar violando vários outros bens jurídicos, tais como a vida, a liberdade, a integridade física, entre outros. Dessa forma, o amplo grau de precedência do princípio da dignidade humana permeia a proteção da pessoa de forma holística.
2.2 A Hermenêutica Constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana.
O Brasil, assim como uma fênix, renasceu das cinzas de uma ditadura para uma democracia. Esse processo culminou com a promulgação de uma nova Constituição, a qual em 05-10-1988 corporificou o Brasil em um Estado Democrático de Direito. Em virtude das opressões da ditadura militar, tal documento se consubstanciou em um texto prolixo de conteúdo abrangente, com o fito de garantir o máximo os direitos fundamentais do seu povo.
Formulada nos ideais do constitucionalismo contemporâneo, inseriu expressamente no seu artigo 1º, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito do Brasil. Além desse artigo, esse princípio encontra-se de forma expressa ou implícita ao longo do texto constitucional, de modo a garantir a dignidade da pessoa humana no âmbito de uma sociedade pluralista.
Segundo Sarlet (2010, p.75), quando o Constituinte Originário consagrou expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito do Brasil, objetivou fundamentar o sentido, a finalidade e a justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado em si. Além desse designo, objetivou também reconhecer que o Estado existe em função da pessoa, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal. Ainda nas palavras deste autor, o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 (CF/88), não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral, mas demonstra também que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma norma jurídico-positiva de status constitucional e, como tal, dotada de eficácia, capaz de garantir os direitos fundamentais do cidadão.
Desta análise pode-se afirmar que, as interpretações dos demais princípios constitucionais, bem como dos direitos fundamentais deverão se realizadas em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse pressuposto favorece que cada ser humano seja respeitado na sua integralidade, de modo a ter sua dignidade protegida e amparada na sua totalidade. Assim sendo, a ignorância ao princípio da dignidade humana amotina contra todo sistema constitucional e consequentemente, contra todos seus valores fundamentais.
Entretanto, para que o princípio da dignidade da pessoa humana seja eficaz e permeie a concretização das necessidades concretas da pessoa, se faz mister implementar a interpretação da Constituição de forma pluralista, de modo a favorecer uma constante construção e reconstrução do texto constitucional.
Martins (2008, p.89) afirma que, a idéia de interpretação pluralista da Constituição, remete à noção de abertura constitucional proposta por Peter Härbele. Este defendia uma hermenêutica constitucional adequada à sociedade, onde todos aqueles que vivessem sob a normatividade constitucional seriam considerados seus legítimos interpretes. Tal fato permitiria uma mediação entre o Estado e a sociedade, uma vez que a Constituição existiria não apenas como uma norma, mas essencialmente como norma interpretada a partir de uma perspectiva pluralista. Assim com essa abertura constitucional, haveria um alargamento do círculo dos interpretes constitucionais.
Dessa forma, a interpretação sob a óptica pluralista defendida por Härbele, não pré-determina um elenco cerrado ou fixado de numerus clausus de interpretes da Constituição, pois, todo aquele que vive sob o manto de uma Constituição, acaba sendo direta ou indiretamente, um partícipe no processo da interpretação constitucional, de modo a remover dos órgãos judiciais o monopólio da interpretação constitucional.
Martins (2008, p.94) sumariza afirmando que, a relação da dignidade da pessoa humana com a abertura constitucional deve ser compreendida numa via de mão dupla, onde de um lado encontram-se todos os que estão sujeitos à normatividade constitucional (pelo simples fato de serem pessoas humanas), onde serão considerados destinatários indiretos da interpretação constitucional e por outro lado, a interpretação deve ser constitucionalmente adequada, de forma que, num determinado caso concreto possa reconhecer e atribuir o máximo de dignidade a todos os participantes da vida constitucional.
Associando-se a essa hermenêutica constitucional de Peter Härbele, tem-se o princípio da Força Normativa da Constituição desenvolvido por Konrad Hesse, o qual contrapôs a teoria defendida por Lassale. Este último afirmava que, questões constitucionais não seriam questões jurídicas, mas sim questões políticas. De acordo com esse entendimento, há uma Constituição Jurídica e uma Constituição Real – nesta se expressam as relações de poder dominantes de um país, dentre estas, o poder militar, o poder social, poder econômico e poder intelectual – de modo que, a capacidade daquela em regular e motivar as relações jurídicas limitar-se-á à adequação desta. Não ocorrendo essa adequação, se instalará um conflito, o que permitirá constatar segundo Lassale, que a Constituição escrita, não passará de uma simples folha de papel, onde perderá a força diante dos fatores reais de poder.
Hesse (1991, p.10), não concordando com a teoria de Lassale, afirma que, a eficácia da Constituição jurídica como subordinada à coincidência entre realidade e norma, constitui-se um limite hipotético extremo. Para tal, defende que a Constituição contenha mesmo de forma limitada uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado; uma força normativa que estimula e coordena as relações entre cidadãos e o Estado, e dentre eles. No entanto, para evidenciar a força normativa da Constituição, Hesse ressalta que, deverão ser acolhidas três condições fundamentais:
1) O condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social: para aquele que contempla somente a ordenação jurídica, a norma está em vigor ou está derrogada. Para aquele que contempla exclusivamente a realidade política e social, não conseguirá perceber o problema na sua totalidade, ou será levado a ignorar simplesmente, o significado da ordenação jurídica. A eficácia da Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem até ser diferenciadas, no entanto, não podem ser definitivamente separadas ou confundidas;
2) Os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica: Hesse sustenta que deverá haver uma relação de coordenação e não de dependência entre a Constituição real e a Constituição jurídica, ou seja, que ambas condicionem-se mutuamente, mas não dependem simplesmente uma da outra. Enfatiza, que para a Constituição jurídica ser dotada de uma força vital, é necessário levar em consideração as leis culturais, sociais, políticas e econômicas, de modo a não construir um Estado meramente abstrato e teórico. Dessa forma para Hesse, o limite da Constituição Jurídica finda a partir do momento que a ordem constitucional não mais se basear na realidade presente;
3) Os pressupostos de eficácia da Constituição: esse fundamento tem por escopo, segundo Hesse, estabelecer os pressupostos necessários ao desenvolvimento da força normativa constitucional. Para tal, deverão compreender tanto ao conteúdo da Constituição, quanto a sua práxis constitucional:
a) Quanto mais o conteúdo de uma Constituição corresponder à natureza singular do presente, mais será desenvolvida a sua força normativa. Enfatiza ainda que, a Constituição deve limitar-se ao estabelecimento de alguns princípios fundamentais, cujo conteúdo específico, em virtude das céleres mudança sócio-políticas, mostrem-se em condições de serem desenvolvidos. A Constituição que se restringe aos seus ditames normativos será de alguma forma sucumbida pela realidade, derrogando desta forma os princípios que ela preconiza;
b) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não somente do seu conteúdo, mas como também da sua práxis. A interpretação realizada levando em consideração os fatos concretos da vida favorece tanto a consolidação, quanto a preservação da força normativa da Constituição, pois a interpretação adequada é aquela que consegue concretizar de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.
Através da teoria de Hesse, pode-se afirmar que caberá ao interprete procurar o sentido que mais confira eficácia às normas constitucionais, transladando o texto jurídico da condição de dever ser, para a de ser. Não é difícil perceber que o principio da dignidade da pessoa humana constitui esse “sentido”, pois ao conferir a máxima de eficácia ao princípio da dignidade da pessoa humana é simultaneamente favorecer a força normativa da Constituição. Essa constatação faz com que cada ser humano seja respeitado na sua integralidade, de modo a ter sua dignidade protegida e amparada na sua totalidade.
Sarlet (2010, p.164) enfatiza a interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana em consonância com o princípio da Força Normativa da Constituição, expressando as seguintes palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha:
...é imprescindível que se outorgue ao principio fundamental da dignidade da pessoa humana, em todas as suas manifestações e aplicações, a máxima eficácia e efetividade possível, em suma, que se guarde e proteja com todo o zelo e carinho este coração de toda sorte de moléstias e agressões, evitando ao máximo o recurso a cirurgias invasivas e, quando estas se fizerem inadiáveis, que tenham por escopo viabilizar que este coração (ético-jurídico) efetivamente esteja (ou, pelo menos, que venha estar) a bater para todas as pessoas com a mesma intensidade. (SARLET, Ingo Wolfgang, 2010, p. 164).
Como se percebe, os interpretes da sociedade aberta, bem como, a constante reinterpretação dos textos constitucionais à luz dos fatos atuais, favoreceu a uma nova hermenêutica constitucional, a qual alicerçada sob os ideais do Estado Democrático de Direito, de Constituições formuladas por alto teor axiológico, ampliou seu campo interpretativo, de modo a não mais restringir-se as regras, mas voltando-se sobretudo, a interpretação de princípios, os quais por sua dimensão aberta, possibilitam não só uma constante concretização, como também viabilizam a delimitação da práxis constitucional.
Posicionando-se acerca da interpretação constitucional, Conselvan (2010, p.08) cita as palavras de Sérgio Alves Gomes, o qual reafirma que a melhor interpretação no âmbito do Estado Democrático de Direito, é aquela que dignifica a pessoa humana, que passa a ser vista como fundamento maior do referido paradigma estatal.
Destarte, há de se compreender, que os objetivos da República consagrados no artigo 3º da CF/88, configuram uma teleologia que tem por fim a salvaguarda da dignidade reconhecida em cada indivíduo e é exatamente isso, que justifica a defesa e a concretização dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões. É essa também a razão maior para a existência do próprio Estado.
Ainda dentro desse contexto, Diniz (1998, p.227) afirma que, a Constituição como sendo a lei fundamental do Estado e da sociedade, incorpora sob os pontos de vista cultural e político, uma série de valores fundamentais, sobretudo na dimensão do reconhecimento da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, os quais fornecem um parâmetro objetivo de interpretação, de tal forma que, o órgão que a interpreta não pode dele se afastar, estando sua atividade condicionada por esta ideologia constitucional, que é o ponto de partida de sua realização.
Martins (2008, p.124) afirma que, o alto teor axiológico do princípio da dignidade da pessoa humana fornece para o interprete uma pauta valorativa essencial à correta interpretação da norma e a justa solução do caso concreto, pois tal princípio é parâmetro para a harmonização dos diversos dispositivos constitucionais, o que confere para o interprete buscar uma concordância pratica entre eles.
Desta análise pode-se afirmar que, as interpretações dos demais princípios constitucionais, bem como dos direitos fundamentais devem ser realizadas em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana. A negação deste princípio implica a negação da própria Constituição. Não se pode querer preservar esta sem que haja observância total e irrestrita àquele, pois ele é a premissa primeira de todo o arcabouço jurídico. A dignidade da pessoa humana é, em outras palavras, a verdadeira força normativa da constituição democrática, pluralística e comprometida com a justiça.
À guisa do que foi exposto, tem-se que o princípio da Força Normativa da Constituição possibilita uma constante legitimação da Constituição, uma vez que possibilita ao interprete extrair do seu conteúdo o máximo de eficácia em cada caso concreto, que por si favorecerá a uma constante revitalização do texto constitucional e a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
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