A luta para limpar nome de engenheiro envolvido em golpe após morrer em explosão de foguete
Flaminio Levy ficou sabendo do acidente pelo rádio, quando voltava para a casa após o trabalho. "Na mesma hora, eu gelei", conta.
"Explosão de grandes proporções no Centro de Lançamento de Alcântara", informavam com destaque os diferentes veículos de comunicação.
O engenheiro Mário César Levy, irmão de Flaminio, trabalhava havia 20 anos com o programa espacial brasileiro e, naquele dia, estava na base, localizada no Maranhão.
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Em Cordeirópolis (SP), os pais de Flaminio e Mário César, Margarida Levy e Flaminio de Freitas Levy, na época com 73 e 83 anos, assistiam à televisão quando souberam, pelo plantão de notícias, que o filho mais novo poderia estar morto.
Mas os detalhes foram surgindo a conta-gotas. Não havia confirmação sobre mortos e feridos. Ela percebeu logo que as chances de o caçula estar vivo eram pequenas. Ele se apegou até o último momento à esperança de que o filho fosse reaparecer.
"Eu telefonei várias vezes para o celular do meu irmão e ele não respondia. Liguei para a minha mãe, que soube da explosão pela TV. Ficamos à espera", relata Flaminio Levy à BBC Brasil.
"A gente sabia que ele trabalhava direto com as peças do foguete e ficamos apavorados", lembra. A confirmação veio um dia depois.
Mário César de Freitas Levy era um dos 21 engenheiros e técnicos que trabalhavam no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) no momento em que o Veículo Lançador de Satélites, o VLS, explodiu, em 22 de agosto de 2003, matando todos eles.
Um dos motores do foguete, que tinha 21 metros de altura e colocaria em órbita dois satélites de observação terrestre, foi acionando antes do tempo, causando o acidente. Mário Levy tinha 43 anos quando morreu e completaria 57 neste ano.
O filho dele, João Paulo, tinha 15 anos na época do acidente. Ele morava em Cordeirópolis (SP) com a mãe e tinha decidido, naquela semana, que passaria a morar com o pai, em São José dos Campos (SP), para conviver mais com ele e se preparar para a universidade.
Depois do enterro com honras militares.... O processo
O engenheiro foi enterrado com honras militares, na presença do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, juntamente com os colegas que morreram enquanto tentavam viabilizar o lançamento do satélite.
Mas, 11 anos depois, em 2014, o filho único levou um susto quando foi tentar registrar em seu nome uma moto e um carro que pertenceram ao pai.
Foi informado de que os bens haviam sido bloqueados porque Mário Levy estava sendo processado, em Belo Horizonte, pela empresa Telefônica (dona da Vivo) por um calote que gerou uma dívida de mais de R$ 1,4 milhão. Calote cometido em 2008 - cinco anos depois de morrer.
"Quando o inventário chegou no fim, achamos que finalmente seria possível liberar os bens. Quando foram no Detran passar uma moto e um carro para o filho e a companheira do Mário, o Detran deu a notícia de que o Mário era alvo de um processo e que não poderia, então, liberar os bens", relata Flaminio Levy.
Confusa, a família contratou advogados para entender o que poderia ter acontecido. Descobriram que o CPF do engenheiro morto foi usado para que ele fosse incorporado, em 2008, como sócio de uma empresa chamada Istaletes Equipamento Eletrônico.
Em 2009, a empresa foi processada pela Telemig Celular, hoje pertencente à Telefônica, por não pagar uma dívida de mais de R$ 1 milhão. Por ser um dos "sócios" da empresa no contrato social, Mário Levy teve os bens bloqueados e a família nunca pôde concluir o inventário.
"Foi aberta uma empresa com o nome de sócios falecidos. Usaram alguns documentos verdadeiros e outros falsos. Essa empresa contratou serviços de telefonia da Telemig, depois incorporada pela Vivo. Na processo de execução da dívida, pela busca do CPF dos sócios acabaram chegando ao patrimônio do Mário. Ele foi vítima de fraude", explica a advogada da família, Juliana Iversen.
Uso de CPF de falecidos
O uso do CPF de pessoas falecidas é uma forma que grupos criminosos encontram de aplicar golpes, porque, em muitos casos, a família demora a perceber a fraude. Para tentar reduzir esse tipo de crime, a Receita Federal lançou, no dia 2 de outubro, um sistema para dar baixa nos CPFs no ato dos registros de óbito.
O cancelamento é feito a partir da integração de dados da Receita e da Central de Informações do Registro Civil (CRC), que reúne todos os atos de nascimento, casamento e óbitos do país. As inscrições de CPF que forem vinculadas ao Registro de Óbito serão cadastradas como "Titular Falecido".
Por enquanto, o novo sistema vale para o Distrito Federal e 14 Estados: São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Goiás, Pernambuco, Ceará, Piauí, Amapá, Roraima, Minas Gerais e Acre.
No caso de Mário Levy, 14 anos após o acidente em Alcântara, os bens deixados por ele como herança ao filho e à companheira estão bloqueados.
"O sentimento é de total impotência. Alguém fala uma coisa errada e você não consegue corrigir. Para a minha mãe, que já tem 87 anos, é difícil reviver isso", diz o irmão do engenheiro morto.
Para desbloquear os bens, a família de Mário Levy entrou, em agosto de 2013, com um recurso chamado "embargos de terceiros", na 14ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, anexando o atestado de óbito para comprovar que ele estava morto havia cinco anos quando foi incluído como "sócio" da empresa processada pela Telefônica.
Neste ano, finalmente o recurso da família foi julgado e o juiz determinou o desbloqueio dos bens. Mas a sentença ainda não foi cumprida. "O juiz removeu a restrição aos bens e provavelmente vai dar prazo para a Vara cumprir essa liberação. Estamos esperando", diz a advogada Juliana Iversen.
Em nota, a empresa Telemig, autora da ação que acabou bloqueando os bens de Mário Levy, informou que não recorreu da decisão do juiz de liberar o patrimônio deixado pelo engenheiro.
"A Telefônica não se opôs ao recurso ao constatar o falecimento e foi proferida sentença determinando o desbloqueio dos bens. A Telefônica novamente não se opôs a tal decisão. A liberação dos bens não depende de nenhuma medida da empresa, mas sim do Cartório respectivo em cumprimento à decisão judicial."
Enquanto isso, os familiares cultivam a herança de Mário Levy que ninguém pode tirar deles: as lembranças.
"Ele era apaixonado por mecânica e esses aeromodelos de avião. Ele tinha dúzias na casa dele. Parecia um museu. Era um negócio, uma paixão, que desde criança ele tinha", recorda Flamínio Levy.
"Esse projeto do VLS, a maioria que estava lá era idealista. O salário não era bom. Mas o fato de estar fazendo um trabalho de ponta, avançado, contava muito para eles."